Noções sobre a vinha e o vinho em Portugal

de Ceferino Carrera


Alteração dos vinhos


O estudo das doenças e defeitos dos vinhos é uma das partes mais importantes da enologia, e cujo conhecimento deve sobremodo interessar aos que, praticamente, dela se ocupam.

O vinho proveniente de uma vinificação cuidada e inteligente nunca adoece. Se as uvas forem devidamente escolhidas, evitando o contacto com utensílios de metal, o mosto bem corrigido, a fermentação racionalmente acompanhada e todas as demais operações devidamente executadas, empregando material vinário desinfectado e limpo e, por fim, desde que o vinho esteja bem conservado, jamais teremos a recear as doenças. Estamos, porém infelizmente, muito longe desta aspiração e na realidade a percentagem de vinhos doentes é grande.

As doenças são devidas a micróbios, a fermentos solúveis ou a acções químicas que alteram a constituição do vinho e modificam desagradavelmente as suas características organolépticas. Os agentes microbianos para se propagarem precisam de encontrar condições favoráveis à sua multiplicação, como por exemplo: temperatura apropriada, falta de acidez, fraca percentagem de álcool, presença de açúcar e albuminóides. Doenças propriamente ditas, isto é, que afectam a conservação dos vinhos, desvalorizando-os ou inutilizando-os como produtos de consumo. É que todo o mal causado pelas doenças dos vinhos, seja ele qual for, não tem remédio. As doenças evitam-se, não se curam.

Dos microrganismos que provocam nos vinhos o estado doentio, uns necessitam do oxigénio (aeróbios) do ar para viverem, outros vivem isolados do ar (anaeróbios) e podem inutilizar um vinho mesmo com a vasilha bem atestada.

Na prática, um vinho doente reconhece-se pela prova e pela determinação da sua acidez volátil: muitas vezes a prova de boca acusa-nos a doença do vinho (manite) e, geralmente, a prova de cheiro acusa-nos a acidez volátil, desde que esta atinja mais de 1 g/l, expressa em ácido acético. A acidez volátil está para a sanidade do vinho como o pulso de um doente está para o seu estado febril.

Alterações de ordem microbiana

A flor

Nem toda a flor formando películas ou véus à superfície dos vinhos tem carácter doentio; na sua maior parte, os véus são devidos não a bactérias mas sim a certas espécies de leveduras alcoólicas, as quais, terminada a fermentação, procuram à superfície do vinho condições de subsistência. Das mais vulgares é o Saccharomyces, Oviformis responsável pelos véus que são normais nos vinhos de (Jerez) e do (Jura), e aos quais se atribui o seu aroma particular, razão de se apelidarem tais véus de flor nobre.

A flor propriamente dita, vulgar nos vinhos pouco graduados, quando em vazio, é ocasionada por um fermento, o Mycoderma Vini, que ataca a glicerina e o álcool, que o desdobra em água e anidrido carbónico.

A flor é a gripe dos vinhos: pouco perigosa por si, mas representa uma porta aberta para as outras doenças, principalmente a azedia.

A Azedia

O acetobacter, fermento do azedo, que para viver precisa de estar em contacto com o ar. Constitui, à superfície do vinho, um véu semelhante ao da flor, mas menos espesso e de cor diferente. O micróbio, com o oxigénio que vai buscar à atmosfera, oxida o álcool do vinho transformando-o em, ácido acético.

Volta

(bactéria anaeróbia), bacterium tartarophtorum. Esta doença é provocada por uma bactéria que, contrário das outras que já mencionamos, vive ao abrigo do ar. Esta bactéria ataca o bitartarato de potássio, ácido tartárico, tanino e a glicerina, dando-nos ácido láctico, acético e propiónico. O vinho apresenta-se ligeiramente gasoso, turvo e com o cheiro característico do «Formigo» que lhe é dado pela presença do ácido propiónico.

A Manite

Doença própria das regiões quentes e, por isso, mais vulgar no Sul do País. É a doença dos vinhos que fermentam a uma temperatura alta. O fermento dessa doença manifesta-se quando a fermentação se dá a uma temperatura superior a 33° ou 35°. O fermento da manite ataca um dos açúcares da uva a levulose, transformando-o em ácido acético, láctico, anidrido carbónico e manite (açúcar infermentescível) e que juntamente com o ácido láctico, imprime ao vinho um sabor repugnante (agridoce), nome pelo qual a doença é também conhecida; o cheiro do vinho é pouco prejudicado.

Amargo

A doença do amargo é peculiar aos Vinhos velhos tintos. Esta doença não deve ser confundida com o gosto amargo adquirido por certos vinhos, passado algum tempo depois de serem engarrafados ou trasfegados com exposição ao ar, pois que estes outros amargos não são devidos a germes organizados, mas sim, segundo parece a uma acção puramente química, assim como, igualmente, nada tem de comum com o amargo adquirido por alguns vinhos provenientes de uvas mildiozadas.

A bactéria ataca os vinhos velhos, pouco ácidos e principalmente os tintos ricos em tanino - o amargo é produzido por uma bactéria de longo ciclo evolutivo. Engarrafados, os vinhos atacados são manifestamente amargos e acusam abundância de ácidos voláteis, registando-se ao mesmo tempo uma fraca subida na acidez total.

Esta bactéria ataca a glicerina, o ácido tartárico, tanino e a matéria corante, etc., dando-nos um vinho com uma cor menos viva; passando a manifestar o amargo, reconhece-se um sabor ligeiro de fermentação como um gosto a alhos podres, devido à presença do ácido butírico.

A gordura

Doença frequente nos anos em que a podridão ataca generalizadamente as uvas. As bactérias que lhe dão origem, ficando suspensas no vinho, tomam-no gorduroso pela sua própria morfologia. Quando a doença está adiantada, o vinho corre em fio como o azeite.

Alterações de ordem química

Casses

De uma maneira geral denominam-se casses a doenças de origem não microbiana, verdadeiras alterações químicas, cuja manifestação final é a mudança de cor, turvação e formação de depósito mais ou menos abundante do vinho, com alteração mais ou menos sensível no sabor, na cor e no perfume.

Casse férrica

Os vinhos acusam pequenas quantidades de ferro, na ordem dos 5 a 30 mg/litro. A presença desta substância nos vinhos retarda a sua limpidez e, quando cristalinos, turvam após a trasfega. O ferro dos vinhos tem duas origens. Pode provir do terreno em que a vinha está instalada, ou ser captada pelos mostos ou pelos vinhos no seu contacto com os utensílios e com os recipientes de cimento das adegas.

Em pequenas quantidades o ferro é benéfico para o organismo humano.

Casse branca

Alteração de um vinho oxigenado pela presença de ferro, Branco ou tinto, o vinho turva adquirindo uma tonalidade leitosa no primeiro e azul ou negro no segundo. Exposto num copo, ao fim de 24 horas o vinho turva, dando lugar a um depósito -Tanato Férrico - de cor azul se o vinho é rico em tanino, como é o caso dos vinhos tintos e dos brancos feitos de curtimenta. Esta é a casse férrica propriamente dita.

Tratando-se de vinhos brancos de bica-aberta com pouco tanino, o ferro precipita na forma de fosfato férrico, que lhes dá o aspecto leitoso. O depósito surge, não azul, mas esbranquiçado. É uma variante da casse férrica que se denomina casse branca.

Casse cúprica

Presença de cobre nos Vinhos. O cobre dos mostos, à parte uma pequena percentagem absorvida dos terrenos, provém dos resíduos deixados pelas caldas sobre as uvas.

Como se processa a casse cúprica?

Um vinho filtrado posto em tonéis ou cascos e especialmente em garrafa turva, uma vez subtraído ao contacto do ar. Arejado o vinho, por trasfega ou desrolhamento das garrafas, em breve limpará. Quer dizer, é o fenómeno contrário daquele que se passa na casse férrica. Para que o ferro se manifeste é necessário uma oxidação e a casse cúprica provêm de uma redução.

Alterações de ordem microbiana

Casse oxidásica (ou castanha)

Esta doença, ao contrário das que temos estudado até aqui, não é devida a micróbios. É provocada sim, por um fermento solúvel ou diástase oxidante, segregada por um fungo muito frequente nas uvas podres, que se chama Botrytis Cinerea.

Por meio desta diástase a matéria corante do vinho é oxidada, insolubiliza-se e precipita-se no fundo das vasilhas; o sabor e o perfume do vinho modificam-se, adquire um gosto e cheiro a cozido. E quanto a cor toma a tonalidade do café, se se trata de um vinho branco, ou do tijolo, se for tinto. Como se pode ver, os tintos ficam descorados e os brancos escurecem.

Alteração de sabor e cheiro - As alterações à prova, além das que são inerentes às doenças microbianas, são defeitos cuja origem pode estar já nas uvas, derivar do deficiente fabrico, ou podem ainda ser o resultado de envasilhamento em más condições. Quase sempre os defeitos de prova se revelam tanto no paladar como no cheiro dos vinhos.

Sabor a gás sulfídrico - Muitas pessoas conhecem-no por sabor a enxofre. Verdadeiramente o cheiro é o dos ovos podres, e pode ser originado:

  • 1 - Do enxofre que vem aderente às uvas.
  • 2 - Das mechas.
  • 3 - Do trabalho das leveduras, que atacam o sulfuroso em determinadas circunstâncias.

Gosto a alhos - Resulta da combinação do sulfídrico com o álcool.

Gosto a sulfuroso - Resultante do uso em excesso deste gás, prejudica o sabor do vinho quando em quantidades demasiadas e dá mal-estar a quem o bebe, dores de cabeça, etc.

Sabor adstringente - Resultante da abundância de matérias tanóides resultantes das curtimentas muito prolongadas.

Gosto a bolor - Provém este gosto do contacto dos vinhos com a madeira bolorenta, ou devida a uvas podres.

Cheiro a rolha - O cheiro comunicado por uma rolha de má qualidade, ao vinho contido em garrafa. Encontra-se principalmente em vinhos velhos.

Aldeídos - Os aldeídos comunicam um cheiro gasoso, muito inconveniente aos vinhos.

Doença de garrafa («Maladie de bouteille»)

O vinho não deve nunca ser consumido logo após o seu engarrafamento. É necessário deixá-lo repousar de um a três meses, conforme os vinhos, daquilo que os especialistas chamam a doença da garrafa.

Com efeito, todas as operações suportadas pelo vinho, por mais delicadamente que elas tenham sido empreendidas, tornam-no «enfadado e rabugento». O engarrafamento é para ele um choque. Qualquer sistema de engarrafamento, mesmo o mais aperfeiçoado, faz o vinho sofrer uma aeração intempestiva que atenua por algum tempo o seu aroma, privando-o das suas qualidades.

Logo que tenha desaparecido o efeito oxidante do ar, o vinho vai pouco a pouco readquirindo o seu equilíbrio, primeiro ainda bastante precário, mas em seguida, se se tratar de vinho para envelhecimento, vão surgindo e desabrochando novas qualidades.

Operações de conservação e tratamento dos vinhos
Envelhecimentos

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