O ESCANÇÃO - DA SUA ORIGEM ATÉ AOS TEMPOS MODERNOS
Através de inúmeras citações, em lendas, escritos antigos e textos bíblicos, conhecem-se testemunhos que comprovam a existência e nobreza do Escanção.
Embora alguns textos sejam discutíveis e a verdade dos factos nebulosa, o certo é que, quem ostenta tão justo título, não pode ignorar a nobreza e antiguidade da função.
NA MITOLOGIA E NA BÍBLIA
Na mitologia Grega encontramos a Deusa Hebe (1), filha de Júpiter (2) e de Juno (3), encarregada de servir aos Deuses, no Olimpo (4), o Néctar (5) e a Ambrósia (6), até ser, por ordem de Zeus substituída nessa tarefa por Ganimedes (7), Príncipe Troiano, filho de Trós (8) , cujo rapto Homero, poeta Grego do século IX a. C. ,descreve num dos seus poemas.
(1) Hebe deusa da Juventude, filha de Júpiter e de Juno encarregada por Júpiter de servir aos deuses o Néctar e a Ambrosia até que foi substituída por Ganimedes. Desposou Hércules, quando este tomou lugar entre os deuses.
(2) Júpiter - principal divindade dos Romanos identificado como Zeus dos Gregos, pai e senhor dos deuses; filho de Saturno (ou Cróno) e de Reia, marido de Luno (Hera), residia no Éter ou sobre o Olimpo entre os outros deuses. Presidia a todos os fenómenos celestes: estações, nuvens, tempestades, raio, etc. Quando nasceu, para o livrar de ser devorado por seu pai, Reia escondeu-se em Creta, onde foi amamentado por cabras; chegando à idade adulta, destronou Cróno, venceu os Titãs e os Gigantes, precipitando-os no Tártaro, deu o mar a seu irmão Neptuno, o Inferno a seu outro irmão Platão e guardou para si o Céu e a terra. Teve uma série de aventuras amorosas na Terra e no Céu e foi pai de numerosos deuses, semideuses e heróis, o que originou muitas questões com Hera ou Juno. Os seus atributos principais são: A Águia ,o Raio e o Ceptro e valeram-lhe os cognomes de Júpiter, Tomante, Júpiter Ferétrio, etc.
(3) Juno - divindade latina identificada com a divindade grega Hera, esposa de Júpiter, filha de Saturno e de Reia, rainha do Céu, deusa dos fenómenos celestes e do casamento.
(4) Olimpo - nome de várias montanhas da Grécia antiga. A mais famosa estava situada entre a Macedónia e a Tessália, com a altitude de 2911 m. Segundo a fábula, era residência dos deuses. Hoje é o Elymbos Vouno, sempre coberto de neve.
(5) Néctar - bebida dos deuses da fábula (bebida deliciosa).
(6) Ambrosia - substância deliciosa com que se alimentavam os deuses do Olimpo (manjar delicado) e tornava imortais a todos aqueles que a absorviam.
(7) Ganimedes - príncipe troiano, filho de Trós e da Ninfa Calírroe, Zeus, metamorfoseado em águia, arrebatou-o e levou-o para o Olimpo para substituir Hebe como escanção dos deuses.
(8) Trós - herói epónimo ( que dá ou empresta o seu nome a alguém) de Tróia, filho de Erictónio e neto de Dárdano, rei da Frígia, pai de Ganimedes. Foi o que deu o nome à cidade de Tróia, que antes se chamava Ílion.
Remontando-nos aos tempos bíblicos, vemos que o Escanção era um grande oficial, a quem, os soberanos tinham em alta estima e consideração. Na Corte de Salomão (1082-975 A. C.), no banquete que o rei ofereceu à rainha do Sabá, ficou esta deslumbrada com os manjares e a beleza dos trajes dos Escanções.
O rei Assério, Senaquerias (681 A. C.) encarregou uma vez o seu Escanção- Mor de reclamar, junto do Rei de Judá, a rendição de Jerusalém. Também Neemias, que restaurou a nacionalidade Judaica no século V a. C., tinha sido Escanção - Mor do monarca Persa Artexerxes.
No génesis "1" (40-41) é descrito o encontro, na prisão, entre o Escanção - Mor do Faraó e José do Egipto.
Na época romana, o lugar era normalmente exercido por Efebos (2) escravos ou libertos, dotados de boa aparência física e com qualidades gustativas, especializados no doseamento de vinho com mel e várias especiarias, como era hábito ao tempo.
Os patrícios (3) tinham grande consideração por estes seus servidores que, pelo vinho que serviam mantinham a reputação das suas casas.
(1) Génesis, o primeiro livro do Pentateuco de Moisés e de toda a Bíblia, em que se descrevem a criação e os primeiros tempos do mundo.
Pentateuco - os cinco livros de Moisés e que são os primeiros da Bíblia. Estes livros são : o Génesis, ou a Criação, até ao estabelecimento do Egipto; o Êxodo, ou a Saída do Egipto, o Levítico ou Livro das Prescrições Religiosas; os Números, exposição da força material do Povo; o Deuteronómico, complemento dos livros precedentes. O Pentateuco, escrito em hebreu arcaico, é o fundamento da História de Israel.
(2) Membro do colégio oficial dos Efebos entre os Atenienses; os Efebos recebiam em Atenas uma educação oficial.
(3) Patrícios - relativo à classe dos nobres entre os Romanos: Cônsul, Patrício (aristocrata)
NA EUROPA, EM ESPECIAL NA FRANÇA
Este nobre cargo existia já entre os Godos, a ele se aludindo num dos capítulos da célebre "Lei Sálica" (1).
No concílios VII, do ano 625, a XIII do ano 683, reunidos em Toledo, há referências à elevada posição que ocupavam os Escanções.
Na corte de Carlos Magno existia o Escanção - Mor, cuja autoridade era respeitada por todos. Em França, o primeiro Escanção foi instituído por Henrique I (1060), de seu nome Hugo. Porém só no reinado de S. Luís, O Escanção - Mor se tornou personagem importante na corte.
Em "Le Grand Dictionnaire Historique" do Padre Luís Moreri, (Paris, 1725) encontram-se citados 44 nomes de Escanções de França.
Na época de Luís VIII ( princípios do século XIII) o Escanção ocupava o segundo lugar na hierarquia da corte, enquanto que, cinco séculos depois, no tempo de Luís XIV, a dignidade de "Premier Echanson de France" já então um título, passou a ter um carácter honorífico .O Escanção mantinha sob a sua autoridade 24 Gentis - Homens, afim de servirem o Rei e nas cerimónias solenes.
Na Monarquia Francesa, no entanto, o cargo foi perdendo a sua alta dignidade, terminando por completo em 1702, quando era primeiro Escanção de França o Marquês de Lamermay.
A configuração heráldica do nobre cargo, era formada por duas garrafas de prata com as armas do soberano, tendo por baixo o brasão do titular.
(1) Lei Sálica (486-496) - Regras de Direito Civil, uma disposição exclui as mulheres à sucessão da Terra Sálica, a terra vinda dos antepassados.
Em todas as casas reinantes da Europa existiu este ofício, sempre exercido por personalidades de alta linhagem. Por exemplo, na Irlanda, há referência a Teobaldo Walter, que juntou a designação "Butler" (Escanção), ao seu próprio nome.
Na corte inglesa, segundo se sabe, além das prerrogativas inerentes ao cargo, os Escanções usufruíam de uma comissão sobre os vinhos importados.
EM PORTUGAL
No reinado de D. Afonso Henriques, parece ter sido seu Escanção Fernão Peres, cavaleiro que gozava do maior prestígio na corte.
Na crónica de D. Sancho II, por Frei Caetano Brandão, cita-se Martin Moniz, como Escanção - Mor d' EI- Rei. No tempo deste Rei como no de D. Afonso II, o Escanção dispunha de dois homens para o ajudarem. Costumava receber três quartas do vinho.
Foi Pêro Fernandez quem ocupou tal cargo nas cortes de D. Afonso III e de D. Dinis.
Logo que aclamado Rei, em 1385, D. João I, Mestre de Avis, proveu os ofícios da sua casa e os cargos públicos a que mais importava atender , escrevendo Fernão Lopes que, entre tais ofícios figurava o de Escanção.
Na época de D. Afonso V, João de Mello e Martim Afonso de Mello (1463) figuraram como personalidades que ocuparam este elevado cargo.
Posteriormente, muitas individualidades foram as que desempenharam o digno cargo de Escanção - Mor: Fernão de Lima, Alcaide - Mor de Guimarães ; João de Melo, Alcaide - Mor de Serpa ; Francisco Sousa e Menezes, Alcaide - Mor da Guarda.
No século XVIII, D. João V atribui, o cargo de Escanção - Mor aos Condes de Vila - Flor.
Porém ao subir ao trono D. Miguel no Séc. XIX retira-lhe o privilegio e entrega-o aos Condes de Penamacor que o sustentaram até à queda da Monarquia, em 1910.
Mais nomes se poderiam acrescentar de personalidades que ostentaram o título na Corte Portuguesa, haveria porém, o perigo de tornar este trabalho fastidioso, pelo que o termino aqui, presumindo que esta simples referência seja suficiente para justificar a antiguidade e nobreza do cargo.
BREVE REFERENCIA: A ORIGEM E FORMAÇãO DO VOCABULO "ESCANÇÃO" .
Muito embora animado da melhor vontade, escasseiam-me no entanto
os conhecimentos especiais necessários ao aprofundamento, com autoridade e saber, de um estudo etimológico.
É este, portanto, o motivo, porque apresento apenas um resumido trabalho, coligido de diversos autores, o qual, de qualquer modo, me parece suficiente para esclarecer donde deriva o termo que, actualmente, reapareceu para designar o profissional de vinhos na Indústria Hoteleira.
Numa simples consulta, verificamos que os estudiosos da etimologia não estão de acordo quanto a origem do vocábulo em questão:
-Para Atenor Nascentes (Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa) deriva do Gótico "SKANJA".
-Segundo Maurice de La Chatre (Dictionnaire Universel -1852) , provém do Céltico "ESCANZARIA ".
-O Padre Louis Moreri , refere-se a "SCANTIO" (Le Grand Dictionnaire Historique).
- E, o Cardeal Saraiva, nas suas "Obras Completas" conclui que alguns o derivam do Céltico e outros do alemão "SCHENK".
Há assim, como se vê, diversas opiniões avalizadas, mas isso não destroi, quanto a nós, o principio, que derive do latim não do clássico mas do vulgar -"SCANCIO" ou "SCANCIONARIUS" é quem deita o vinho ( mas que conhece bem a qualidade e o vinho que deita no copo) e como já foi dito SCANCIONARIA é a sala onde o vinho era distribuído. E, já o Padre Moreira das Neves num dos seus artigos refere o seguinte texto das Ordenações Afonsinas: "... se mede o vinho ou o escança aos bebedores na Taberna".
No Doutor Morais, Escanção significa aquele que reparte o vinho, enquanto que no democrático Dicionário Porto Editora, o que enche os copos ( do Germ. SKANJA).
Se é verdade que, por vezes, somos levados a pensar que se trata de simples picuinhas dum passado distante, não pode ser menos verdade que, para além do estudo técnico, é pela elevação da sua cultura geral que o profissional enriquece a sua personalidade e se valoriza socialmente, com benéficos reflexos no perfeito desempenho das suas funções.
NOS TEMPOS ACTUAIS
A função democratizou-se, quem actualmente ostenta tão honroso título não possui sangue fidalgo nem pergaminhos de nobreza. Notabiliza-se porém, pelo enriquecimento dos conhecimentos adquiridos e pelo requinte que disponha a essa bebida, tão inebriante como nobre, que é o vinho.
O Escanção é o profissional de hotelaria especializado em tudo que diz respeito ao vinho e todas as outras bebidas, desde a água ao mais sofisticado dos destilados .
O bom desempenho das suas funções, implica necessariamente possuir: boa capacidade de relacionamento com os clientes, um perfeito conhecimento do sector vitivinícola nacional e internacional, bons conhecimentos de gastronomia, um bom nível de cultura geral e um bom domínio dos principais idiomas (visto que somos um país turístico visitado por pessoas de todos os cantos do Mundo).
O bom Escanção deve estar em condições de responder a todas as perguntas dos clientes ,quer sejam de ordem técnica, histórica ou cultural.
Esta especialidade requer, portanto, para além de uma certa dose de talento, um estudo e uma aplicação constante, estar ao corrente das produções nacionais e internacionais, saber as características de cada vinho sem esquecer a qualidade das diferentes colheitas.
Deve aconselhar ,de forma subtil mas firme o cliente (sempre que seja chamado para tal) em função da refeição escolhida ou vice versa isto é, escolhendo primeiramente os vinhos e posteriormente as iguarias mais adequadas aos mesmos. Escolhido o vinho, deve a respectiva garrafa (s) ser aberta (s) à temperatura conveniente, temperatura esta que se deverá manter, afim de realçar as qualidades intrínsecas da bebida.
Uma coisa o Escanção tem de ter sempre presente no seu espírito:
Deve fazer provar e servir os vinhos e, perante os cumprimentos, manter-se modesto porque ...não é o Escanção que se cumprimenta mas, o vinho que se felicita... !
Porque os vinhos do País não são uma dádiva gratuita da natureza, não apareceram espontaneamente as vinha não foram plantadas duma só vez, mas é o trabalho paciente de várias gerações, que com respeito e dignidade criaram vinhos de uma qualidade e reputação que os tornam conhecidos em todo o Mundo; Daqui quero prestar homenagem ao trabalhador da viticultura e vinicultura e aos excelentes Enólogos que desempenham as suas funções no nosso País; porque como Escanção que sou, entendo que os Escanções devem ser ( são) os interlocutores entre quem elabora os excelentes vinhos e o consumidor; enaltecendo as qualidades naturais da bebida, assim como todo o saber que os nossos Enólogos emprestaram aos nossos vinhos.
Ceferino Carrera.
Lisboa, Junho de 2002.